Aumenta o número de denúncias de assédio sexual no DF

Aumenta o número de denúncias de assédio sexual no DF

Um a dois anos de cadeia é a pena para quem constrange sexualmente outras pessoas aproveitando-se de uma posição hierárquica superior ou influência em um contexto profissional. O assédio sexual foi tipificado como crime em 2001, por meio da Lei 10.224. Nos últimos dias, o tema voltou a ganhar destaque em função da denúncia da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, contra o ex-ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, que acabou sendo demitido do cargo.

No Distrito Federal, o número de denúncias caiu entre 2022 e 2023, conforme a Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF). No entanto, a quantidade de casos registrados no ano passado (80) foi maior do que em cada um dos quatro anos anteriores a 2022 (veja quadro). Nos primeiros oito meses de 2024, foram 60 ocorrências. Em 94% dos casos, as denúncias foram feitas por mulheres. Somente na Justiça do Trabalho, de acordo com o Monitor do Trabalho Decente (MTD), foram instaurados 365 processos por assédio sexual distribuídos ao primeiro grau no DF, de junho de 2020 até ontem.

O Correio ouviu vítimas desse crime, que relatam o constrangimento, o trauma e a atitude que tomaram. O jornal também conversou com especialistas que explicam a legislação, ressaltam a importância da denúncia, e falam sobre as sequelas psicológicas para quem sofre esse tipo de violência.

“Eu me fiz de cega, surda e muda”, disse Cecília* (nome fictício), 29 anos, ao relatar o episódio de assédio sexual sofrido quando era estagiária em um escritório de advocacia. Ela diz que, na própria entrevista de emprego, o superior hierárquico da função fez comentários que a deixaram desconfortável, tais como “nossa, você é muito bonita, imagina o que deve fazer”, “se eu tiver qualquer oportunidade, não vou perder”.

Como queria muito estagiar naquela empresa, pela importância no mercado, a jovem, então com 19 anos, deixou passar. “Depois de um mês trabalhando lá, ele começou a me chamar para todas as atividades externas as quais comparecia. Um certo dia, ele disse que eu precisava ficar até mais tarde no escritório, e dispensou o restante da equipe. Do nada, veio passando as mãos nas minhas costas. Para disfarçar, eu me levantei para ir ao banheiro. Foi quando ele veio correndo, se colocou na minha frente e começou a me agarrar”, relata. “Eu comecei a gritar e disse que ia chamar a polícia. Ele dizia que, se eu fizesse isso, ia estragar minha carreira, que estava só começando”, completa.

Cecília conta que retornou ao trabalho no dia seguinte e ouviu desse chefe: “pelo visto, você gostou, se voltou aqui”. Quando estavam sozinhos na sala, ele tentou abraçá-la novamente. Cecília saiu correndo e foi direto à delegacia. “Fiz a denúncia e nunca mais retornei à empresa. Seis anos depois, cruzei com ele em outro escritório e relatei o ocorrido ao responsável. Ele disse que não era a primeira vez que ouvia histórias do tipo a respeito do meu agressor”, recorda. Surpresa com a falta de atitude da empresa, ela optou por pedir demissão.

Assedio sexual no DF

Advogada especialista em gerenciamento e enfrentamento ao assédio no trabalho, Michelle Heringer explica que, no caso de ausência de provas, “a palavra da vítima assume preponderante importância, por ser a principal se não a única prova de que dispõe para demonstrar a responsabilidade do agressor”. Michelle acrescenta que o crime pode ser provado ainda por meio de bilhete, e-mails, áudios, vídeos, comentários em redes sociais, aplicativos de mensagens e também por testemunhas.

“Importante destacar que não há necessidade do toque ou do contato físico, considerando que piadas e comentários com conotação sexual, convites impertinentes para saídas e até gestos podem caracterizar o assédio. Para a configuração do crime, é indispensável que ocorra de forma dolosa, quando o agente tem a intenção de praticar o ato, e não tenha o consentimento da vítima, ou seja, não há reciprocidade entre os envolvidos”, completa a especialista.

Lorena* (nome fictício), 41, foi assediada sexualmente durante um ano. O chefe a agarrava e passava as mãos constantemente pelo seu corpo, além de mostrar as partes íntimas quando ela entrava no escritório dele. “Eu não denunciei durante esse tempo todo porque meu marido tinha uma doença grave e não podia trabalhar. Eu tinha dois filhos e morria de medo de perder o emprego e o plano de saúde”, relembra. “Sofri calada, até que um dia instalei uma câmera na sala dele e consegui gravar tudo. Com a prova em mãos, fiz a denúncia na ouvidoria da empresa, registrei ocorrência na delegacia e me livrei do agressor que me violentou por tanto tempo. Ele foi demitido e responde na Justiça pelo crime de assédio”, conclui Lorena, que, na ocasião, era assessora e tinha 40 anos. Atualmente, ela faz acompanhamento psicológico para superar a experiência.

A advogada Michelle Heringer alerta sobre a relevância da denúncia. “O silêncio não protege, apenas reforça o poder do agressor. Nenhuma vítima deve sentir culpa de ter sido assediada, não deve sentir vergonha do que passou, pois não é responsabilidade dela a agressão que sofreu”, aconselha.

Também é importante que a vítima busque atendimento psicológico e/ou psiquiátrico, como fez Lorena. De acordo com a presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr), Renata Figueiredo, o assédio pode causar ansiedade, depressão, sintomas psicossomáticos e isolamento social, afetando gravemente a saúde mental da vítima. “O acompanhamento por parte de um profissional é essencial para o processamento do trauma, prevenção de transtornos crônicos e recuperação da autoestima, além de auxiliar na reintegração profissional e social”, ressalta.

A médica complementa que é preciso a implementação de medidas preventivas no ambiente de trabalho, promovendo um espaço seguro e acolhedor, que evite novas ocorrências e proteja a saúde mental dos trabalhadores.

O Governo do Distrito Federal (GDF) estruturou, em 2020, o Programa de Combate e Prevenção ao Assédio Moral e Sexual. Voltado aos órgãos do governo local, foi criado por meio do Decreto nº 41.536. Desde então, mais de 20 mil pessoas foram alcançadas, incluindo gestores, e mais de 700 servidores do GDF foram capacitados. Houve elaboração e distribuição de materiais e educação quanto às medidas que podem ser adotadas pelas vítimas e/ou por pessoas que tenham presenciado os acontecimentos.

Este ano, o Decreto nº 46.174, assinado pelo governador Ibaneis Rocha e publicado em 22 de agosto, instituiu a Política de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Moral e Sexual no âmbito da administração direta e indireta do Distrito Federal. A norma abarca a anterior e aprimora as tratativas dos casos, definindo a construção de uma política de saúde mental voltada às vítimas. Ficaram definidas medidas cautelares para denunciantes, que incluem a possibilidade de transferência de local de trabalho e mudança de horário, entre outras.

Uma comissão especial trabalha em uma ação de conscientização voltada aos gestores, para que saibam lidar com casos de assédio e criar um ambiente seguro para a recepção do e da denunciante.

Mulher, sua palavra vale muito

Por Tamara Souza, advogada especialista em Direito Criminal

Provar o assédio sexual pode ser desafiador, principalmente porque, em muitos casos, ele ocorre de forma velada e sem testemunhas. No entanto, a palavra da vítima tem grande relevância, especialmente em crimes dessa natureza, onde o testemunho direto pode ser raro. A jurisprudência já reconhece que, em situações onde não há provas materiais, o depoimento firme e coerente da vítima, aliado a outros indícios, pode ser suficiente para a condenação. Contudo, é sempre recomendado que se guarde registros, como e-mails, mensagens ou gravações, e que se busque apoio de testemunhas indiretas ou circunstanciais.

Meu principal conselho é que, primeiramente, não se calem. É fundamental que a vítima busque ajuda, seja com amigos, familiares, ou até com profissionais capacitados, como psicólogos e advogados. Em segundo lugar, é importante reunir o máximo de evidências possíveis, sejam mensagens, e-mails, gravações, ou testemunhas. Registrar um boletim de ocorrência e buscar auxílio legal são passos essenciais para que a justiça seja feita. Lembrem-se: o assédio sexual é crime, e ninguém deve se sentir constrangida ou culpada por denunciar.

Reforço a importância de iniciativas educacionais dentro das empresas, escolas e instituições para prevenir o assédio sexual. É necessário que haja um ambiente seguro, onde as vítimas sintam que podem denunciar sem medo de retaliações. Além disso, o papel da sociedade em apoiar e acolher as vítimas, sem julgamentos, é fundamental para que cada vez mais mulheres sintam-se encorajadas a denunciar essas práticas abusivas. Juntos, podemos construir um ambiente mais seguro e justo para todos.

O assédio também pode vir em forma de importunação sexual, um crime tipificado em 2018 que consiste em praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. As penas variam de um a cinco anos de prisão. De 2019 para 2023, as denúncias aumentaram 116% no Distrito Federal. No ano passado, 13,5% dos episódios de importunação sexual ocorreram em ônibus, metrô, veículos por aplicativo e transporte irregular.

No Distrito Federal, tanto a Companhia do Metropolitano do Distrito Federal (Metrô-DF) quanto a Secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob-DF) têm estratégias de combate à importunação nos meios de transporte públicos. No metrô, a partir da denúncia ou da comunicação do fato, os agentes de estações ou do Corpo de Segurança Operacional, após o acolhimento da vítima, conduzem as partes à delegacia para o registro da ocorrência. “A companhia faz campanhas internas de conscientização e de capacitação de todos os colaboradores para proporcionar um melhor acolhimento e proteção das vítimas, levantamento de informações e encaminhamento das partes para ciência e providências da autoridade policial de plantão”, informa o órgão, em nota.

A Semob-DF destaca que realiza campanhas nas redes sociais, nas TVs dos ônibus e nos totens da Rodoviária do Plano Piloto para alertar sobre a prática do crime de importunação sexual. De acordo com a pasta, nos casos em que o motorista ou o cobrador identificam ou são comunicados de uma ocorrência desse tipo dentro do coletivo, o veículo pode ser conduzido até a delegacia mais próxima ou a viagem pode ser interrompida e a PM acionada. Os rodoviários são orientados sobre os procedimentos em cursos e palestras que a Semob recomenda às concessionárias do transporte coletivo.

2019 — 390

2020 — 433

2021 — 550

2022 — 682

2023 — 846

2024 (até março) — 202

Ligue 190 — Polícia Militar(PMDF)

Ligue 197 — Polícia Civil (PCDF)

Ligue 180: canal da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes, além de reclamações, sugestões e elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento. A denúncia pode ser feita de forma anônima, 24h por dia, todos os dias. A ligação é gratuita.

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